14 de fevereiro de 2016

Adeus à carpintaria

As dobradiças da pesada porta rangeram quando ele a abriu. Com alguns passos, atravessou a carpintaria silenciosa e abriu as persianas de madeira para que um feixe de luz solar penetrasse a escuridão, desenhando um quadrado iluminado no chão empoeirado.
Olhou em torno da carpintaria. Deteve-se por um momento no refúgio do pequeno recinto que abrigava tantas lembranças doces. Equilibrou o martelo em sua mão. Passou os de dedos por entre os dentes afiados da serra. Acariciou a madeira suave do cavalete. Ele veio para dizer adeus.

Era o momento de partir. Ele ouvira algo que o fez saber que era hora de ir. Assim, veio sentir pela última vez o cheiro de serragem e de madeira cortada.
A vida era calma aqui. A vida era tão…segura.
Ali ele passou incontáveis horas de contentamento. Naquele chão empoeirado, brincou quando criança enquanto seu pai trabalhava. Ali José o ensinou a segurar um martelo. Enaquele cavalete ele construiu sua primeira cadeira.
Fico imaginando o que ele pensou ao dar uma última olhada naquele espaço. Talvez tenha ficado parado por um tempo. Talvez tenha ouvido vozes do passado preenchendo o oar.
Bom trabalho,Jesus.”
José, Jesus, venham comer.”
Não se preocupe, senhor, vamos terminar a tempo. Jesus vai me ajudar.”
Fico imaginando se ele hesitou. Se seu coração ficou dividido. Se rolou um prego entre o polegar e os dedos, antevendo a dor.
Foi na carpintaria que ele ter concebido seus pensamentos. Ali conceitos e convicções foram entrelaçados a fim de dar forma ao tecido de seu ministério.
É quase possível ver as ferramentas do ofício em suas palavras. É possível ver a exatidão de um fio de prumo enquanto ele proclama suas normas morais. É possível imaginá-lo com um lápis e um livro-razão enquanto pede por honestidade.
Foi ali que suas mãos humanas moldaram a madeira que suas mãos divinas haviam criado. E foi ali que seu corpo amadureceu enquanto seu espírito aguardava o momento certo, o dia certo.
E agora esse dia havia chegado.
Não deve ter sido fácil partir. Afinal de contas, a vida como carpinteiro não era ruim. Não era nada ruim. O negócio andava bem. O futuro era luminoso, e seu trabalho , agradável.
Em Nazaré ele era conhecido apenas como Jesus, o filho de José. Pode ter certeza de que ele era respeitado na comunidade. Era bom com as mãos. Tinha vários amigos. O favorito dentre os filhos. Sabia contar uma boa piada e o hábito de encher o ar com risos contagiantes.
Fico imaginando se ele quis ficar. “Poderia fazer um bom trabalho aqui em Nazaré. Acertar a vida. Construir uma família. Ser um líder da comunidade.”
Fico imaginando porque sei que ele já havia lido o último capítulo. Ele sabia que os pés que sairiam pela porta segura da carpintaria não descansariam até que fossem perfurados e pendurados numa cruz romana.
Veja, ele não tinha de ir. Ele possuía uma escolha. Poderia ter ficado. Poderia ter mantido a boca fechada. Poderia ter ignorado o chamado, ou pelo menos adiado. E tivesse ele escolhido ficar, quem saberia? Quem o teria culpado?
Ele poderia voltar como homem numa outra época, quando a sociedade não fosse tão volátil, quando a religião não fosse tão rançosa, quando as pessoas prestassem mais atenção.
Poderia voltar quando a cruz estivesse fora de moda.
Mas seu cpração não permitiria isso. Se houvesse hesitaçãopor parte da sua humanidade, foi superada pela compaixão de sua divindade. Sua divindade ouviu as vozes. Ouviu o clamor desalentado do pobre, as acusações amargas do abandonado, o desespero vacilante dos que tentam salvar a si mesmos.
E sua divindade viu as faces. Algumas enrugadas. Algumas chorando. Algumas escondidas atrás dos véus. Algumas obscurecidas pelo medo. Algumas sinceras em sua busca.Algumas empalidecidas pelo tédio. Da face de Adão até a face do último bebê nascido em alguma parte do mundo enquanto você lê estas palavras, ele as viu todas.
E pode ter certeza de uma coisa. Dentre as vozes que ressoaram naquela carpintaria em Nazaré estava a sua voz. Suas orações silenciosas proferidas em travesseiros manchados por lágrimas foram ouvidas, antes mesmo de serem ditas. Suas perguntas mais profundas sobre a morte e a eternidade foram respondidas, antes mesmo de serem feitas. E sua necessidade mais extrema, sua necessidade de um Salvador, foi atendida, antes mesmo de você pecar.
E ele não apenas ouviu você; ele o viu. Viu sua face resplandecer quando você o conheceu pela primeira vez. Viu sua face corar de vergonha quando levou o primeiro tombo. A mesma face que olhou para você naquele espelho matinal, olhou para ele. E foi o suficiente para matá-lo.
Ele partiu por sua causa.
Guardou sua segurança junto com seu martelo. Pendurou sua tranquilidade junto com seu avental. Fechou as persianas da janela com o resplendor de sua juventude e trancou a porta com o conforto e a comodidade do anonimato.
Uma vez que lhe era mais fácil carregar nossos pecados do que carregar o pensamento de nossa desesperança, ele escolheu partir.
Foi difícil. Dizer adeus à carpintaria nunca é fácil.
(Do livro: Deus está aqui-Max Lucado)


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