Na sala de aula, a resposta foi unânime: João 3:16!
“Mas não poderia ser outro versículo?”, perguntei. Sem hesitar, um aluno respondeu: “Sim, poderia, mas esse é que mais usamos”. A pergunta feita a uma turma de missões transculturais para membros de diversas denominações foi qual versículo eles mais usavam em evangelismo. Mudei o contexto: “E se vocês estivessem num país budista no Sudeste Asiático, qual passagem bíblica usariam para explicar a mensagem do Evangelho?”. Depois de uns minutos de silêncio, todos mantiveram a resposta: “João 3:16!”. Repeti a mesma pergunta em diversas cidades pelo Brasil e a resposta era quase a mesma.
Agora imagine o contrário. Um missionário budista tailandês chegou ao Brasil, começou a aprender o português, e depois de um tempo se relacionando com as pessoas de sua comunidade, diz: “Só existe salvação por meio do Dharmma. O deus criador é avijja. Buda ensina que precisamos eliminar o Dukkha de nossas vidas, compreender o vijja, entender a lei do carma, escapar do ciclo do samsara e alcançar o Nirvana. Milhares de pessoas no mundo tem saído do caminho da ignorância através desde nobre caminho. Vocêtambém quer segui-lo?”
Coçadas na cabeça, modo de compreensão ativado. Mesmo assim muitas pessoas possivelmente não entenderão o significado da mensagem do missionário budista. Dharmma, avijja, dukkha, samsara, são palavras que não existem na língua brasileira. Para compreendê-las, seria necessário buscar seu significado nos ensinos budistas originais, e ainda assim, a compreensão seria limitada, pois trata-se de uma cosmovisão e padrão de pensamento diferente.
Similar situação de estranhamento e confusão sente um budista em muitos países na Ásia ao dialogar com missionários cristãos estrangeiros, incluindo brasileiros, e até conterrâneos que são cristãos locais. Ainda que faladas na língua do receptor, aquelas palavras contidas no “plano de salvação” como salvação, justificação, expiação, pecado, sacrifício na cruz, redenção, além dos conceitos que entendemos sobre amor, graça, relacionamento com o Deus criador, soberano e pessoal são incompreensíveis para os budistas asiáticos no seu contexto cultural. Sim, incompreensíveis! Em alguns casos, tais palavras nem existiam na língua nativa e foram inventadas, pois não havia uma construção cultural entre eles que atribuía o mesmo significado nas culturas judaico-cristãs ocidentais.
E é justamente neste ponto que existe um grande problema. Sem uma adaptação cultural e clara transmissão pelos comunicadores, neste caso cristãos – como você, eu, um outro estrangeiro e até mesmo um cristão asiático – a mensagem simplesmente não é compreendida. Assim, o que deveria ser a chegada das Boas Novas, torna-se Más Novas. Como assim más? Veja, por exemplo, como um budista tailandês interpreta João 3:16.
Interpretação budista de João 3:16
Na década de 60, Wan Petchsongkram, um monge tailandês experiente, teve um encontro transformador com Cristo. Ele, que fora um líder espiritual budista por oito anos e passou nos mais rigorosos testes no sistema de ordenação de monges, agora era um novo seguidor de Cristo. Habituado aos estudos e com muita sede de entender mais a Palavra de Deus, começou a estudar avidamente a Bíblia.
Uma vez ciente da forma como os missionários estrangeiros estavam comunicando o evangelho, Petchsongkram fez uma série de alertas de que muitos dos termos comunicados eram incompreensíveis para povo local, quase 90% budista theravada[1]. É de seus escritos que tirarmos a interpretação de como os budistas tailandeses entenderiam João 3:16 (BOON-ITT, 2007).
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crênão pereça, mas tenha a vida eterna”. João 3:16
Deus
A tradução usada para a palavra Deus em tailandês e nas línguas das nações influenciadas pelo budismo como China, Mongólia, Taiwan, Laos, Mianmar, não transmite a ideia que um cristão ocidental automaticamente possui: Deus, único, criador, todo poderoso, onipotente, amoroso, gracioso, misericordioso e santo. O fundador do budismo, ao reformar ideias e crenças hindus, rejeitou a ideia de Deus ou uma divindade absoluta, muito menos relacional. Em suma, Buda pregou que Deus não existe.
Quando a palavra Deus é escutada por um budista que não conhece o evangelho, na maioria dos casos, ele vai relacionar Deus a um deva, ou seja, um ser superior aos homens com poderes sobrenaturais, que está também dentro do ciclo da samsara (roda da vida), buscando liberação do sofrimento para alcançar o nirvana.
Na crença budista tradicional, apesar de Buda não ser crido como Deus, ele é visto como alguém acima dos devas, logo seria superior a Deus.
Amou o mundo
Atribuir uma personalidade a Deus e o descrevê-lo com um ser que “ama” ou se “ira”, comunica um ser inferior a um budista estudado. Desta forma, a mensagem do Evangelho seria vista como inferior e que não compreende a verdade a cerca da vida e do universo.
Dentro deste exemplo, na Tailândia, o cristão usaria a palavra “mettã” para amor, contudo existe um ditado em tailandês que diz: “o perigo surge daquilo que amamos”.
Uma das quatro nobres verdades do budismo é que deve-se eliminar tudo o que causa sofrimento. No pensamento clássico, o amor deveria ser eliminado, pois leva ao apego, que resulta em sofrimento.
Deu seu filho unigênito
Um budista, em geral, fica horrorizado com a história da crucificação de Cristo. Eles entendem que o carma é a lei inescapável das causas e efeitos que acontece na vida de cada ser. Desta forma, por ter sido crucificado, Cristo deve ter cometido o mais grave dos atos na vida passada para ter sofrido de tal maneira. Budistas compreendem a cruz como a doutrina mais desprezível.
Vida eterna
Seria ficar preso eternamente na samsara ou a roda da vida, ciclo de sofrimento em várias encarnações, condicionadas pelo carma, que os budistas buscam justamente escapar para alcançar o nirvana, ou seja, o estado de libertação fora do ciclo da samsara onde há ausência total de sofrimento.
Perigos e oportunidades: construindo um novo paradigma missionário
E agora? O que comunicamos como Boas Novas, pode ser recebido como Más Novas por muitos budistas, gerando muita resistência ao cristianismo, e o pior, ao Evangelho, pelo povo local. Há 40 anos Petchsongkram afirmou categoricamente: “A igreja da Tailândia atual precisa absolutamente aprender a comunicar a sua fé de forma inteligível e em termos convincentes”. Não somente eles, mas nós missionários brasileiros, assim como qualquer outro cristão estrangeiro servindo entre os budistas, também precisamos aprender a comunicar o Evangelho para eles.
Registros na Tailândia revelam que pioneiros, como os missionários americanos presbiterianos, levaram mais de cem anos para perceber que careciam de compreensão do pensamento religioso-filosófico tailandês e da construção histórica.
“Só na década de 1950 é que eles começam a perceber que entender a religião tailandesa, o budismo em particular, seria importante para as suas atividades. Essa percepção foi tida por poucos missionários e veio tarde demais, conseqüentemente, a comunidade cristã tailandesa foi deixada sem pensamentos substanciais e sem literatura para a continuação da proclamação apologética missionária” Pongudom (1979), abstract IV
Mesmo depois de 165 anos de evangelismo feito por protestantes, o percentual de cristãos professos chegou a somente 0,6% em 1980, constatou Maen Mejudohon, pesquisador evangélico tailandês. Ele estudou as estratégias missionárias do século 19 até o presente e concluiu que a eficácia era seguida de métodos de testemunho culturalmente apropriadas e avisa:
“Eu creio que a igreja cristã na Tailândia é vista como violadora dos valores culturais e religiosos de reciprocidade e harmonia por usar métodos de evangelismo agressivos, e agora, é privada da oportunidade de iniciar um diálogo sobre o evangelho”. (Mejudhon, 1997, p. 1 )
Desta forma, Mejudhon desafiou missionários a mudarem sua atitude e a acharem pontes de contato com a cultura local, com os valores religiosos, e a estudar o budismo em sua forma mais pura a fim de achar e reconhecer as expressões populares e o impacto que ele tem no dia a dia da vida e cultura dos tailandeses. Cristãos e missionários que não estudarem a cultura tailandesa e o budismo ficarão frustados quando testemunharem sobre Cristo.
Vocês devem estar pensando: por que isso não foi feito antes? Em termos simples, o motivo foi a influência do paradigma colonialista nas estratégias missionárias, de essência impositiva. Neste caso, estudar o budismo para compreender a cosmovisão local, para contextualizar o evangelho e para se relacionar com o local, não era uma máxima. O importante era fazer com que os locais pensassem como os missionários.
David Bosch, notável missiólogo sul-africano, defende que “o empreendimento missionário moderno em sua íntegra está tão contaminado por sua origem no colonialismo ocidental e sua estreita associação com ele, que é irremediável; temos que encontrar uma imagem completamente nova hoje” (BOSCH, 2002, p.617). É esse novo caminho da comunicação intercultural, firmada na verdade absoluta da Palavra, que precisamos buscar.
Este modelo pós-colonialista de missões lança um olhar mais atencioso à dimensão antropológica e hermenêutica. David Bosch nos ensina que “vivemos em um período de transição, na zona limítrofe entre um paradigma que não mais satisfaz e um outro que ainda é, em grande parte, amorfo e opaco” (BOSCH, 2002. 439). Mudar um paradigma é anunciar um tempo de crise, e isto representa um perigo e oportunidade, pois muitas perguntas clamam por respostas e muitas “respostas” acossam. Precisamos transpor o modelo anterior, marcado pela encarnação do evangelho culturalmente impositivo e incompreensível para o receptor, durante o colonialismo, por um mais dialógico, culturalmente compreensível, encarnacionalmente relevante e biblicamente assertivo.
Cada vez mais pastores e cristãos asiáticos, nascidos em nações sob influência budista, reconhecem a importância que aprender a comunicar o Evangelho ao seus conterrâneos. O Reverendo Bantoon Boon-Itt e sua esposa Mali Boon-Itt, são respeitados líderes na Tailândia. Ele é a quarta geração dos primeiros convertidos protestantes tailandeses e pastoreia uma igreja na capital Bangcoque. Ainda jovem estudou teologia, fez mestrado em divindade na Ásia, e em quase 20 anos de ministério em seu país e em sua língua, percebeu que os budistas locais pouco ou nada compreendiam da mensagem das Boas Novas que compartilhava. A partir deste momento, ele embarcou num doutorado na Inglaterra, para justamente estudar como estabelecer pontes de diálogos com os budistas, na esperança de ver ondas de pessoas vindo a Cristo na Tailândia.
Vejamos o caso do Rev. Bantoon Boon-Itt e sua família, assim como da maioria dos cristãos locais. Apesar de falaram a mesma língua que os budistas tailandeses e terem nascido e crescido no mesmo lugar, houve uma incorporação gradual de termos e lógicas compreensíveis somente dentro do cristianismo ocidental, e um afastamento do entendimento da cosmovisão budista local, resultando numa comunicação do Evangelho não inteligível e desprezível, como bem observada por Petchsongkram.
Numa perspectiva antropológica, estamos falando de um processo de ocidentalização da alteridade no processo de conversão, que afetou todas as permeabilidades culturais. Por alteridade entende-se a interpretação que uma pessoa efetua de tudo o que permeia, de sua realidade e do outro, a partir do seu contexto cultural e que é vivido sob a pretensão de verdade absoluta (RODRIGUES, 1998). Logo, no caso em análise, a interpretação sobre a realidade feita por um cristão asiático, neste caso tailandês, a partir de seu contexto cultural, tornou-se cada vez mais parecida com a dos missionários ocidentais, e o distanciou da sua cultura local. A consequência foi um grande afastamento da igreja do cerne dos problemas da cultura e de como o evangelho pode realmente transformar aquela realidade no seu mais íntimo, de dentro para fora.
Enquanto morei na Ásia, notei que esta situação se repetia em países como China, Mongólia, Taiwan, Mianmar, Vietnã, Laos, e outros, cujas cosmovisões também foram influenciadas pelo budismo. Esta limitação da compreensão do outro, do modo como ele vê e interpreta o universo que o cerca, não fomenta o respeito cultural, não aproxima as partes e nem constrói bons canais de comunicação (LIDÓRIO, 2014).
O que precisamos hoje é de uma desocidentalização da alteridade da igreja asiática e um resgate da compreensão e respeito cultural nos relacionamentos, evangelismo, discipulado, plantação de igrejas e ações sociais.
Por Mila Gomides
Site: http://www.martureo.com.br/por-que-budistas-nao-entendem-joao-316/